Visão de Ramallah

Visão de Ramallah

CARTAS DA LUTA PALESTINA

Ghassan Kanafani (Akka, 9 de Abril de 1936, Palestina – Beirute, Líbano, 8 de Julho de 1972) foi um importante escritor e militante político palestino de esquerda. Desde a adolescência lutou contra a colonização da Palestina e pela preservação da identidade cultural de seu povo como militante da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) – organização secular da esquerda palestina. Seus contos e romances traduzem a luta dos trabalhadores contra colonização.

Visão de Ramallah


Eles nos alinharam em duas filas nas margens da estrada de Ramallah a Jerusalém. Mandaram todo mundo levantar os braços. Quando um soldado sionista percebeu que minha mãe ficou diante de mim para me proteger daquele sol quente de julho ele me puxou violentamente pela mão até o meio da estrada poeirenta. Ordenou que eu ficasse me equilibrando sobre um só pé e com as mãos sobre a cabeça.

Eu tinha nove anos. Acabara de ver, quatro horas antes, a chegada dos sionistas a Ramallah. Parado no meio do asfalto cinzento, notei como revistaram as pessoas à procura de joias, que eram arrancadas brutalmente. Havia algumas mulheres-soldados que agiam como os homens, mas com maior agressividade e convicção. Minha mãe me olhava, chorando em silêncio. Eu queria poder dizer-lhe que me sentia bem, que o sol não me fazia nenhum mal, como ela parecia estar achando.

Eu era a única criança que lhe havia sobrado. Meu pai morreu antes do início dos acontecimentos. Meu irmão mais velho fora preso na tomada de Ramallah. Eu sabia, então, o que representava para minha mãe. Hoje é possível imaginar o que seria dela se eu não ficasse ao seu lado quando fomos a Damasco. Ali eu ganharia a vida vendendo jornais pela manhã nos pontos de ônibus.

O sol começava a minar a resistência dos velhos e das mulheres. Gritos, protestos e lamentações vinham de todo lado. Eu observava vários rostos que já me havia acostumado a ver pelas ruas de Ramallah. Essa lembrança me inspirava uma tristeza difícil de definir. Nunca vou poder explicar o calafrio estranho que senti ao ver uma das moças judias puxarem, rindo, a barba de meu tio Abou Othman.

Ele não era meu tio de verdade: era o barbeiro de Ramallah e também cumpria as funções de médico na cidade. Todos gostavam de Abou Othman e lhe deram o apelido de “tio” para mostrar o respeito que tinham por ele. Agora estava parado ali, apertando junto ao corpo sua filha mais nova, a pequena Fátima, que olhava para a judia com seus grandes olhos negros.

– É sua filha?


Ele balançou a cabeça, meio inquieto. Seus olhos tinham um fulgor sombrio. Com toda a simplicidade do mundo, a judia ergueu sua metralhadora para a cabeça de Fátima. A menina continuava a olhá-la com os olhos negros cheios de pavor.

Um soldado sionista chegou justamente nesse instante. A cena havia-lhe chamado a atenção e ele se colocou diante de mim, impedindo minha visão do que se seguiu. Ouvi três balas sucessivas zunindo. O que pude ver a seguir foi o rosto de Abou Othman crispado por um sofrimento atroz. A cabeça de Fátima pendeu para frente. Grossas gotas de sangue escorriam de seus cabelos, derramadas sob o sol ardente.

Alguns minutos depois, Abou Othman passou a meu lado, carregando com seus velhos braços o corpo de Fátima. Estava calado e olhava apenas para frente, com uma espécie de calma metálica, assustadora. Ele passou sem me ver. Notei como suas costas estavam arqueadas enquanto ele avançava entre as duas filas até a primeira curva. Meu olhar se voltou e se deteve sobre a mulher, que se tinha jogado ao chão. Vi como ela pôs as mãos no rosto e explodia em soluços.

Um soldado sionista chegou perto dela e pediu que se levantasse. Ela não obedeceu. Acho que havia atingido ali o último grau de desespero.

Dessa vez pude ver claramente, com meus próprios olhos, o que ocorria. O soldado a empurrou com o pé e ela se deitou de costas. Tinha a face vermelha. O soldado colocou a ponta do fuzil sobre seu peito e disparou uma única bala.

A seguir, ele veio em minha direção. Pediu com voz tranquila que eu levantasse o pé que havia posto no chão sem perceber. Obedeci e levei duas bofetadas. Ele limpou a mão manchada com meu sangue em minha camisa. Senti um enorme cansaço e fiz força para achar minha mãe ao longe, entre as outras mulheres. Ela tinha os braços erguidos bem acima da cabeça. Chorava em silêncio. Quando nossos olhares se cruzaram, ela sorriu suavemente, entre as lagrimas. Uma dor terrível cortava minha perna, que se dobrava sob meu peso. Tentei devolver o sorriso triste, como para dizer que as bofetadas não haviam doído, que tudo estava bem e que o mais importante era não se lamentar, ou agir como Abou Othman.

Ele passou outra vez perto de mim. Ao vê-lo, abandonei meus pensamentos. Voltava para seu lugar sem me olhar. Ao chegar perto do cadáver de sua mulher, parou. Eu só via seu corpo de costas, dobrado, as roupas ensopadas de suor. Podia imaginar seu rosto: vazio, silencioso e molhado pela transpiração. Ele se abaixou para carregar o corpo. Muitas vezes eu vira sua mulher sentada diante da loja, esperando que ele acabasse de almoçar para voltar com a marmita para casa. Ele passou, pela terceira vez, diante de mim, ofegante, com o suor inundando o rosto enrugado. Passou por mim, sempre sem me ver, e eu vi outra vez seu dorso encurvado afastando-se entre as duas filas de prisioneiros, que agora já não choravam mais.

O silêncio, de repente, envolveu mulheres e velhos. Foi como se as lembranças de Abou Othman penetrassem pelos ossos de todos. Lembranças que ele costumava contar a todos os homens de Ramallah quando conversavam nas cadeiras da barbearia. Lembranças que agora enchiam todos os peitos e se infiltravam sorrateiramente nos ossos, para corroê-los como ácido.

Era uma pessoa muito querida. Confiava em tudo e em todos e, mais ainda, nele mesmo. Começou do nada e, quando a revolução da Montanha de Fogo o empurrou… para Ramallah, voltou ao seu ponto de partida.

Recomeçou então a dar duro, sempre útil como uma planta fecundada pela terra fértil de Ramallah. Conseguira a estima e a afeição dos habitantes da cidade. Quando começou a última guerra da Palestina, vendeu tudo o que tinha para comprar armas, que distribuía entre os parentes, pedindo-lhes que cumprissem seu dever. A barbearia se transformou em depósito de armas e munições. Ele nunca pediu nada em troca desses sacrifícios. Tudo o que desejava era ser enterrado no belo cemitério da cidade, à sombra das árvores frondosas. Os homens de Ramallah sabiam que Abou Othman esperava ser enterrado ali quando chegasse o dia.

Ao meu redor, os rostos cobertos de suor refletiam o peso das lembranças. Eu olhava para minha mãe, parada ali com os braços levantados, o corpo ereto como se não sentisse qualquer cansaço. Imóvel como uma estátua de chumbo, ela seguiu Othman com os olhos. Eu virei um pouco a cabeça para poder ver o “tio”, que agora estava diante de um soldado sionista. Ele disse alguma coisa e depois apontou para sua barbearia. Depois foi andando, sozinho, na direção dela. Voltou logo, trazendo um lençol branco que usou para envolver o corpo de sua mulher. Retomou então, com ela nos braços, sua marcha rumo ao cemitério.

Voltei a vê-lo um pouco depois, vindo em nossa direção com o andar muito pesado, o corpo ainda mais encurvado, os braços cansados pendurados ao longo do corpo. Aproximou-se lentamente de mim. Havia envelhecido muito. Seu rosto tinha a cor de poeira. Ofegava. Sobre seu peito se misturavam traços de sangue e lama.

Parou e ficou me encarando como se eu fosse um desconhecido. Ficou um pouco ali, parado no meio da estrada, sob aquele terrível sol de julho, coberto de poeira, encharcado de suor, seus lábios rachados e a boca, onde o sangue secava, entreaberta. Continuou a me olhar por um tempo. Tive a impressão de ver em seus olhos um mundo de coisas que me perturbavam sem que eu as pudesse chegar a compreender. Ele retomou seu caminho, passo a passo, fôlego curto. Quando chegou ao seu lugar, parou de avançar, virou o rosto para a estrada e levantou os braços bem alto.

Não foi possível enterrar Abou Othman como ele sempre havia imaginado. Ele entrou no escritório do comandante sionista para um interrogatório. Quando colocou os pés lá dentro, todos ouviram uma pavorosa explosão. O prédio inteiro desabou e o corpo de Abou Othman desapareceu entre os escombros.

Mais tarde, minha mãe contou, enquanto caminhávamos pelas montanhas rumo à Jordânia, o que houve. Abou Othman, ao entrar na barbearia antes de enterrar sua mulher, não havia retornado somente com o lençol branco.

Foto de Ghassan Kanafani

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