Curiosidade de uma criança ou o destino de um homem?

Curiosidade de uma criança ou o destino de um homem?

CARTAS DA LUTA PALESTINA

Ghassan Kanafani (Akka, 9 de Abril de 1936, Palestina – Beirute, Líbano, 8 de Julho de 1972) foi um importante escritor e militante político palestino de esquerda. Desde a adolescência lutou contra a colonização da Palestina e pela preservação da identidade cultural de seu povo como militante da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) – organização secular da esquerda palestina. Seus contos e romances traduzem a luta dos trabalhadores contra colonização.


Curiosidade de uma criança ou o destino de um homem?


Meu filho… o futuro,

Ontem, no outro quarto, ouvi você perguntando a sua mãe:

-“Sou palestino também?”

Quando ela disse:

-“Sim”.

Um silêncio pesado tomou toda a casa como se algo suspenso sobre as nossas cabeças tivesse caído… Uma explosão… e depois, o silêncio. Não podia acreditar em meus ouvidos, mas acreditei em meus dedos. Eu estava lendo, quando senti o tremor de minhas mãos refletirem no livro.

Não… foi tudo real em um nível alarmante… e ouvi você chorar! Não podia me mover. Algo fora de meu alcance estava acontecendo no outro quarto, enquanto você soluçava cheio de dúvidas. Era como se uma lâmina abençoada estivesse abrindo seu peito e lá colocando o coração que lhe pertencia. Sua pergunta ainda ecoava sob o teto reverberando o tremor de meus dedos:

-“Sou palestino também?”

Em seguida a lâmina golpeia, num movimento rápido e limpo, como de um hábil cirurgião:

-“Sim!”… seguido de silêncio… como se nada tivesse acontecido, e então, ouço você chorar.

Não consegui me mover para ver o que estava acontecendo no outro quarto, mas eu sabia, no entanto, que uma pátria distante estava renascendo… terras de pradarias e campos de oliveiras… todos os mortos, as bandeiras rasgadas, e outras dobradas, trilhando caminho para um futuro de carne e sangue, para nascer no coração de uma criança.

Fui tomado pelo mesmo sentimento, há cinco anos, quando você nasceu. Eu estava em pé, esperando você emergir do alheio para o desconhecido, e senti, enquanto ouvia você chegar ao mundo chorando com lamento, que estava repousando em meus ombros e me enraizando mais firmemente ao solo.

Aqui estou, no outro quarto, vendo você nascer de novo, sentindo você repousar em meus ombros novamente e me empurrando ainda mais profundamente na terra.

Neste momento desejei poder ver como, em seu rostinho abundante de inocência, estava sendo iniciada à tristeza… como que aquele – “Sim!”, tal qual ferro em brasa, erradicou a inocência da infância, enquanto inconsciente, você deslizava sobre as lâminas espalhadas a sua frente. Você estava sendo criado naquele momento, diante dos olhos de sua mãe e meus dedos, que tremiam como as páginas do livro, como se alguém lhe empunhasse uma arma e dirigisse seus olhos para o gatilho.

Entre os dois quartos, através paredes, as veias da terra ramificaram-se, unindo-nos novamente. Não podia me mover, mas eu sabia, mesmo que vagamente, por que você involuntariamente chorou.

Acredito nesse desconhecido que é transmitido por palavras, mas que não é percebido por ninguém. Você, sem saber, sentiu que essa palavra significou pertencer… e sofrimento. Isso pode representar pra você, mais do que para mim, talvez a euforia de uma vitória.

Esses anos que me escaparam serão seus, e a esperança, dentro de mim, não vai diminuir, mas será enviada para você, e adicionado a sua, crescerá dentro de você. Você sem dúvida sentiu isso, caso contrário, por que choraria?

Lembro-me – sentado no outro quarto, ouvindo você renascer através de seu choro – como eu também nasci de novo. Eu tinha apenas dez anos, quando carros nos transportavam para a vergonha da fuga.

Eu não sabia nada, então, não sentia nada. Sem consciência, ainda desfrutando da inocência da infância, mas naquele momento, deparei-me com uma cena que jamais esquecerei: os caminhões haviam parado e desloquei-me para onde os homens estavam de pé, impulsionado talvez, pela curiosidade de uma criança ou mesmo pelo destino de um homem. Os vi, então, entregando suas armas no posto da fronteira. Para que entrássemos no mundo dos refugiados com as mãos vazias. Voltei deprimido, sem compreender o que sentia. Minha mãe estava sentada com outras mulheres e me aproximei dela como um refúgio, então, ela me perguntou:

-“Alguma coisa errada?”

“Eles estão entregando suas armas” – disse a ela.

Da mesma forma que sua mãe disse “Sim”, para você, naquele dia minha mãe disse “Sim!” para mim.

O silêncio se abateu sobre nós como se algo tivesse caído e sob a intensidade de seu olhar, me vi chorando. Naquele dia nasci novamente, estava olhando os homens, mais uma vez, com um olhar que eles não estavam acostumados a ver de mim e minha mãe – sozinha – estava me olhando com um olhar que eu não estava acostumado a ver.

Não acredito que o homem cresce. Não!

O homem nasce de repente: numa palavra, num instante, penetra seu coração para lhe dar um novo pulso. Uma única cena pode lançar-lhe da proteção inocente da infância para a áspera estrada da vida.

Da mesma maneira que aquele “Sim!” me recriou, outro “Sim!” recriou você, e ouvi como você o aceitou, com gemidos de um homem que emerge de um desconhecido a outro, num fluxo rítmico impossível de controlar.

Se sua pergunta foi como a minha… a curiosidade de uma criança ou o destino de um homem? Não importa!

Nasceu, naquele instante, a antiga terra dentro de um novo homem… testemunhei esse nascimento do outro quarto… e senti que, aquelas veias, resistiram e se enraizaram por outros campos, por corpos. E quando veio até mim, parecia emergir de si mesmo e uma voz em seu íntimo lhe falou:

– “Siga!”

De início, isso causou em você pânico… mas colocou-lhe às portas do caminho de seu destino.

Foto de Ghassan Kanafani.

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