Visão de Gaza

Visão de Gaza

CARTAS DA LUTA PALESTINA

Ghassan Kanafani (Akka, 9 de Abril de 1936, Palestina – Beirute, Líbano, 8 de Julho de 1972) foi um importante escritor e militante político palestino de esquerda. Desde a adolescência lutou contra a colonização da Palestina e pela preservação da identidade cultural de seu povo como militante da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) – organização secular da esquerda palestina. Seus contos e romances traduzem a luta dos trabalhadores contra colonização.


Visão de Gaza


Meu caro Mustafa,

Acabei de receber a carta onde você diz que arranjou tudo para mim em Sacramento. Também recebi um aviso da Universidade da Califórnia informando sobre minha admissão em Arquitetura. Preciso agradecer por tudo o que você fez, mas tenho de dizer, e isso vai parecer meio estranho, que mudei de ideia. Quero que você saiba, meu caro Mustafa, que minha decisão havia sido tomada quando eu ainda não podia ver as coisas muito claramente. Por isso, meu amigo, não vou fazer companhia a você no “país do verde e dos belos rostos”, que você me descreveu. Vou ficar por aqui mesmo. Não vou mais sair.

Lamento muito essa decisão quando penso que não vamos mais poder continuar juntos. Quase posso ouvir você dizendo que devemos caminhar sempre lado a lado (e aquele nosso juramento: “Vamos ficar ricos”). Mas agora não tenho escolha. Está certo, lembro-me bem daquele dia em que acompanhei você até o aeroporto do Cairo. Apertamos as mãos enquanto começavam a girar as hélices do avião. As imagens, ali, confundiam-se num turbilhão ruidoso, acompanhando o movimento das hélices. Até hoje vejo você parado diante de mim, com o rosto sério e silencioso. O mesmo rosto que você tinha em nosso bairro de Al Shagiah, em Gaza. Com algumas rugas a mais, é verdade. Crescemos juntos e hoje não precisamos de muitas palavras para conversar. Prometemos ficar sempre juntos. Porém…

“Dentro de um quarto de hora o avião decola. Deixe de empurrar a vida desse jeito. Olhe aqui: no próximo ano você vai ao Kuwait. Economiza algum dinheiro, o suficiente para deixar Gaza e ir para a Califórnia. Nós começamos juntos e precisamos continuar juntos.”

Eu olhava o movimento rápido, inquieto, de seus lábios. Era o mesmo jeito de sempre de falar, sem ponto nem vírgula. Mas eu sentia, ainda que de um jeito meio confuso, que você não estava contente assim com essa fuga. Foi incapaz de me enumerar três motivos que a justificassem. Eu havia sofrido muito e tinha todas as razões para me perguntar: por que não abandonar Gaza e cair fora? Mas você, pelo contrário, já estava melhorando de vida. O Ministério da Educação do Kuwait havia confirmado o emprego, enquanto eu havia recusado. Durante aqueles anos de miséria, recebi de você algumas pequenas quantias de dinheiro, que sempre fez questão de chamar de empréstimos, para não me humilhar. Você conhecia bem minha situação familiar e sabia que o pequeno salário que eu recebia na escola primária não era suficiente para as necessidades de minha mãe, nem da viúva de meu irmão e seus quatro filhos.

“Escute bem. Escreva todos os dias, todas as horas, todos os minutos. O avião vai decolar… Adeus. Não, não. Melhor até a vista… Até a vista.”

Seus lábios frios tocaram meu rosto. Você começou a andar na direção do avião. Quando se virou, mesmo ao longe, pude perceber seus olhos cheios de lágrimas.

Pouco tempo depois, o Ministério de Educação do Kuwait me ofereceu um emprego. Não preciso dar detalhes novamente de minha vida cotidiana depois disso. Tenho escrito a você sem parar. A vida era monótona e meio vazia; vivia feito uma ostra. Sufocado por uma terrível solidão, lutava o tempo todo e via o futuro tão escuro quanto o coração da noite. Uma rotina insuportável, arrastada, uma resistência sem-fim contra a força da deterioração provocada pelo passar do tempo. Tudo ao meu redor era vicioso, asfixiante. A vida era apenas a espera viscosa do fim de cada mês.

Por volta da metade do ano, os sionistas começaram a atirar contra a base de Al Sahha, e depois bombardearam Gaza. Cobriram nossa Gaza de bombas e de fogo. Isso podia ter quebrado a rotina em que eu vivia, mas àquela altura nada mais me motivava. Estava quase abandonando Gaza para ir à Califórnia, viver um pouco para mim mesmo depois de tantos anos de sofrimento. Eu odiava Gaza e todo mundo que vivia nela. Tudo o que existia nesta terra desolada me lembrava um desagradável quadro pintado, uma vez, por um companheiro de quarto do hospital, todo em tons de cinza. Sempre dei dinheiro suficiente para permitir a sobrevivência de minha mãe, da viúva de meu irmão e suas crianças. Inspiravam-me grande piedade, mas não podiam justificar que eu me resignasse à minha tragédia e continuasse a vegetar, afundando mais e mais. Na Califórnia poderia também me livrar dessa responsabilidade. Nesse verde país, longe do cheiro da derrota que me perseguiu por sete anos… Era preciso fugir.

Mustafa, você compreende esses sentimentos porque também passou por isso. E do que será feito esse vínculo misterioso que nos prende, apesar de tudo, a Gaza e que freia nosso impulso rumo ao desconhecido? Por que não procuramos analisar esse mistério, tentando esclarecê-lo? Por que, no fundo de nós mesmos, não existia a certeza de querer abraçar uma nova vida, mais alegre, sem preocupações? Por quê? A essa pergunta nunca ousamos responder. Pelo menos até hoje…

Nas férias de junho, quando eu já estava arrumando tudo o que precisava para partir, quando minha imaginação mergulhava nas primeiras e pequenas coisas que dão à vida sabor e prazer, descobri em Gaza coisas que nunca havia visto antes, velho marisco fechado em sua concha que o mar havia jogado por acaso, na areia. Mais dobrado sobre si mesmo do que a alma de quem dorme em pleno pesadelo. Nas minúsculas ruas e becos, sempre o cheiro feito da mistura de derrota e pobreza, as casas com seus balcões sonolentos. Era Gaza… Uma rede de rios inextricavelmente enlaçados que nos prendia a nossas famílias, nossas casas, nossas lembranças, como uma fonte que atrai para ela o viajante perdido.

Não sei exatamente o que se passou comigo. Tudo o que sei é que fui visitar minha mãe um dia, bem cedo. Ali, encontrei a viúva de meu irmão, que me pediu, chorando, que atendesse ao pedido de sua filha Nádia, a filha de meu irmão, tão bonita já em seus treze anos de idade!

No fim da tarde, comprei uma libra de maçãs e fui ao hospital. Eu sabia que minha mãe e a viúva de meu irmão me haviam escondido alguma coisa a respeito de Nádia, algo que não podiam dizer na minha frente. Senti, mas não pude adivinhar. Eu gostava de Nádia, como gostava de todas as crianças dessa geração. Crianças que haviam bebido o leite da derrota e que se haviam acostumado à vida errante; ao ponto de uma vida sedentária, tranquila, parecer-lhes uma espécie de anomalia social.

O que houve no hospital? Entrei tranquilamente no quarto branco. Uma criança doente tem algo de santo. Mas com o que se parece uma criança marcada por cruéis e dolorosas feridas? Nádia estava deitada na cama, sobre um lençol muito branco. Seus cabelos espalhados faziam o rosto parecer uma joia numa caixa de veludo branco. Tinha um profundo silêncio nos olhos e notei as lágrimas no fundo deles. Mas tinha o olhar sereno, como o de um profeta atormentado. Era ainda uma criança, mas havia crescido muito em pouco tempo, podia-se perceber.

-Nádia…

Não sei se fui eu ou outra pessoa quem pronunciou seu nome. Ela ergueu os olhos para mim. Quando vi aqueles olhos negros me senti derreter como um pedaço de açúcar jogado numa xícara de chá fervente. Vi seu sorriso transparente e ouvi sua voz:

-Tio! Você veio do Kuwait?

Sua voz parecia quebrar-se dentro da garganta. Precisou apoiar-se sobre as mãos para levantar o pescoço em minha direção. Coloquei a mão em suas costas e me sentei na beira do colchão:

-Trouxe uns presentes do Kuwait. Muitos presentes, mas vou esperar até que você se levante, que fique boa e volta para casa. Comprei uma calça, aquela calça vermelha que você me pediu, lembra?

Foi um erro que a tensão que vinha me crescendo sem parar dentro de mim acabou por provocar. Nádia tremeu, como se um arrepio percorresse seu corpo. Abaixou a cabeça, guardando uma calma espantosa. Senti minhas lágrimas nas costas da mão.Que foi, Nádia? Não quer a calça vermelha? Ela me olhou como se fosse dizer algo, mas continuou em silêncio. Depois de um momento, ouvi sua voz, que parecia vir de muito longe:

-Tio…
Retirou a colcha branca para me mostrar a perna, amputada à altura da coxa.

Mustafa, eu nunca mais vou poder esquecer isso. E não vou poder esquecer a tristeza que a partir de então marca todos os traços do rosto dela. Deixei o hospital naquele fim de tarde para sair andando pelos bairros da cidade, com as mãos crispadas sobre o pacote de maçãs. Com a luz do sol que caía, as ruas me pareceram lavadas de sangue. Gaza me pareceu inteiramente diferente da cidade que você e eu conhecemos. As pedras amontoadas à entrada do bairro de Shagiah davam a impressão de transmitirem algo que me escapava. A Gaza em que passamos sete anos de tristeza e frustração não estava mais ali. Em seu lugar, havia uma espécie de início, de amostra de algo que viria pela frente. A rua principal, que tomei para voltar para casa, parecia o primeiro trecho de uma estrada, mais longa do que aquela que vai até Safad. Gaza toda, e tudo o que havia nela, estremecia ao redor da perna amputada de Nádia gritava um apelo que era mais do que um apelo, era o desejo delirante de dar de volta a Nádia a perna cortada.

Caminhei pelas ruas que o sol ainda banhava. Fiquei sabendo que Nádia havia perdido a perna ao tentar proteger os irmãos quando sua casa se incendiou durante o bombardeio. Ela poderia ter fugido e escapado ilesa. Mas não fez isso. Você sabe por quê?

Não, Mustafa. Eu não vou mais para Sacramento. Não lamento isso. Não vou poder ir até o fim dos sonhos que tivemos juntos desde a infância. É preciso que deixemos crescer este estranho sentimento, que você certamente teve, com uma ferida, ao deixar Gaza. Temos de fazer com que ele supere todos os outros. Procure dentro de você mesmo até encontrar. Mas acho que você não pode reencontrá-lo a não ser aqui, no meio das ruínas de nossa tragédia.

Eu não vou mais partir. Você é quem deve voltar. Voltar para aprender, diante da perna amputada de Nádia, o que vale a vida, nossa vida.

Volte. Todos nós esperamos por você.

Foto de Ghassan Kanafani.

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