Uma linda crônica

Uma linda crônica

Autor: Yasser Jamil Fayad

Preciso escrever uma crônica e as imagens sobrepõem-se em minha cabeça. Todas remetem ao genocídio palestino iniciado após o sete de outubro de 2023. A brutalidade e a covardia sionistas não escondem sua face ante aos civis indefesos. Lembro-me de diariamente ver as crianças ensanguentadas a correr de bombas; mulheres desesperadas a chorarem seus maridos e filhos mortos; as enormes explosões que derrubavam prédios inteiros com famílias civis dentro e faziam emergir em seguida uma espessa fumaça em forma de cogumelo lembrando Hiroshima e Nagasaki; a população civil sendo evacuada para áreas pretensamente “seguras”, mas que eram também intensamente bombardeadas; as pessoas implorando comida e água obstruídas pela ação do cruel exército invasor; os caminhões repletos de ajuda humanitária proibidos de entrar na Faixa de Ghaza através do Egito; hospitais em condições caóticas tentando salvar vidas, sem eletricidade, sem remédios, sem equipamentos suficientes, ao mesmo tempo que eram alvos privilegiados dos mísseis israelenses; as escolas que deveriam servir como abrigo para mulheres, crianças e idosos serem sistematicamente atingidas por projéteis teleguiados… enfim, a imensa bestialidade produzida por Israel contra os palestinos não sai da minha mente.

Consigo lembrar também dos tendenciosos noticiários da grande mídia ocidental retratando tudo com uma única versão: a israelense. Os jornalistas correspondentes falam diretamente de Tel Aviv, quando raramente, próximos da Faixa de Ghaza, sempre se encontravam junto aos soldados e tanques da entidade ocupante. A notícia não é informação é, sim, propaganda de guerra. Nela os alvos civis palestinos são legitimados simplesmente por acrescentarem, sem nenhuma confirmação ou checagem jornalística, a expressão “é do Hamas”. No fundo todo o palestino é representado como um membro do Hamas e, portanto, pode ser assassinado em nome do direito de defesa de Israel. Desta forma, atacaram hospitais, escolas, abrigos da ONU, ambulâncias, civis famintos atrás de farinha… dizendo apenas “é do Hamas”, para que tudo cinicamente fosse justificado. 

Eu poderia escrever uma crônica sobre qualquer um desses eventos hediondos, da cumplicidade da grande mídia ou sobre a dor e o sofrimento infligidos ao povo palestino, contudo a Palestina não é isso. Estas atrocidades são produto do colonizador.

Eu conheço a Palestina e sua história esplêndida. Queria poder escrever uma crônica que fosse capaz de capturar toda a beleza deste admirável povo: seus delicados bordados que remetem a cada uma de suas cidades milenares; as esquinas por onde profetas caminharam e falaram; as ruínas de tantos majestosos castelos que denotam civilizações absorvidas; as carreatas comemorando casamentos; o idioma árabe com seu “sotaque” próprio; as seculares casas de pedra e as plantações de Oliveira que se perdem no horizonte; o cheiro inconfundível da fumaça do narguilé; o aroma do cardamomo misturado ao café; a cerâmica cuidadosamente pintada de azul em Hebron; as pequenas e grandes praças repleta de jovens conversando; os multicoloridos vestidos e véus das lindas mulheres palestinas; as ricas confeitarias repletas de sabores adocicados; o gosto do figo açucarado como em nenhum outro lugar do mundo; a textura da famosa água de Jericó; os sons do suq de Nablus e suas acaloradas negociações; o tato do pé em contato com as areias de Ghaza; a mesa farta nos encontros familiares; o sorriso das crianças brincando em Rafah; os casamentos alegres dos beduínos no deserto; a graciosa música árabe viva na voz de Mohammed Assaf; as ruas repletas de pessoas caminhando à noite, após o intenso calor do dia; o comércio pujante; a comida árabe de rua com sanduíche de falafel em cada esquina movimentada; as mesquitas sobriamente fazendo o chamamento para oração; pela manhã os estudantes caminhando em direção às escolas; os trabalhadores dirigindo-se às conduções coletivas; todas as intensas cores e maravilhosos odores dos temperos árabes expostos à venda; a inigualável hospitalidade dirigida a todos que a visitam; os restaurantes cheios; as Universidades repletas de estudantes; o som das buzinas frenéticas que mais parecem brinquedos nas mãos dos palestinos; os cartazes com imagens dos mártires coladas nas paredes e postes; o nome das ruas e das praças que sempre remetem à identidade de resistência e luta; as placas amarelas nos sinaleiros contendo nomes de vilarejos destruídos na Nakba; o muro da vergonha repleto de comoventes grafites que aludem à libertação;  as milhares e milhares de histórias de resistência – pequenas e grandes – que nos orgulham… a final, toda a identidade palestina.

Um povo, que sabe de sua origem, conhece seu território e a ele está atrelado por uma rica e densa história e cultura, não pode ser apagado nem derrotado. Quanto ao inimigo? Não passa do resto indesejado e expulsado de e por Europa, em um ajuntamento heterogêneo de origens, professando uma visão empobrecida de mundo repleta de colonialismo, exclusivismo e racismo. Os palestinos contrastam dramaticamente com esta gente estrangeira pela linda riqueza e acentuada sofisticação de sua cultura resultante de numerosas sínteses dos povos que ali passaram e viveram. Os árabes palestinos são, antes de tudo, essa magnífica construção que absorve a sua maneira todos os outros que estiveram naquele espaço.

Em suma queria eu poder escrever uma crônica capaz de traduzir esta formosura que se manifesta em resistência e que vencerá o passageiro e fugaz colonizador judaico europeu. Essa sim… seria uma linda crônica.

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