Uma pequena história de libertação na Palestina

Uma pequena história de libertação na Palestina

Viagem à Palestina – agosto de 2019.

Cisjordânia

Autores: Yasser Jamil Fayad, Jamil Abdalla Fayad e Khader Othman.

Nunca fui uma pessoa ligada a esportes, o que sempre tornou difícil a minha compreensão sobre as pessoas situadas no espectro oposto ao meu.  Em especial, aqueles que levam os seus corpos, mental e fisicamente, aos limites da completa exaustão por livre e espontânea vontade. Um amigo próximo, pertencente a este último grupo e praticante assíduo da modalidade de triatlo, anos atrás me descreveu, minuciosamente, as terríveis dores sofridas por ele em cada parte de sua anatomia, as penosas câimbras em músculos até então por ele desconhecidos do seu próprio corpo e toda a gama de outros desconfortos inimagináveis, gerados durante um processo de prova dessa modalidade. Para suportar tais condições extremas, me relevou o uso de certa “artimanha psicológica”, aprimorada e aperfeiçoada ao longo dos treinos e provas. Dizia ele que pensava sempre no que já tinha passado e vencido, fixando-se em valorizar todas as pequenas vitórias ao longo do grande percurso das três modalidades. Explicou que esse artifício funcionava mais ou menos assim: “consegui subir a ladeira mais difícil da prova”, “nadei o trecho mais perigoso”, “passei pela modalidade que mais sofro”, “venci as temperaturas mais incômodas de todo o trajeto”, etc… Assim, dizia ele, que conseguia manter a persistência necessária para enfrentar o longo e terrível percurso que ainda tinha pela frente. 

Penso que algo similar acontece na dinâmica psicológica coletiva dos setores populares nas lutas de resistência e libertação, em particular naquelas prolongadas temporalmente como na Palestina.  Para tanto, defendo a necessidade da promoção de diversas formas discursivas incluindo literatura, poesia, cinema, etc., que valorizem tanto as pequenas vitórias quanto as grandes vitórias e não supervalorize as derrotas. Tudo isso como um artifício ideológico necessário para manter a moral alta e a disposição inabalável de lutar. A imagem de si mesmo é uma forte indutora de ação política, visto que quem se vê derrotado não age para se libertar. O perigo está em fazer do pessimismo da razão, através de análises “frias”, uma forma também de matar o otimismo da vontade, transformando-o em um imobilismo derrotista. Isso não significa abandonar o realismo político, especialmente nos setores de direção política, mas compreender o papel dos fatores subjetivos na psicologia popular de luta. Relatar a história das pequenas conquistas como forma não só de torná-las conhecidas, o que já seria um ato importante em si, mas, fundamentalmente, como forma de enaltecer a luta de resistência e libertação é um passo tático importante, para quem defende o povo palestino.  Os oprimidos, que lutam sobre bases materiais muito precárias, a exemplo das pedras nas mãos dos jovens palestinos contra tanques israelenses, precisam ter valorizados cada pequena vitória. Não só por que, dada as condições concretas, são atos esplendidos e colossais de superação, mas também para manter elevada sua autoestima como força psicológica fortalecendo, desta forma, a persistência que tal luta necessita.

Nesse sentido, quero contar, aqui, uma pequena história de libertação na Palestina. Estávamos passeando e conhecendo os limites territoriais da nossa cidade anfitriã,  quando avistamos, ao longe, uma rodovia cercada de telas de ambos os lados.  Alguém do grupo disse que se tratava da ligação entre Tel Aviv  e Al-Quds (Jerusalém) e sem acrescentar mais informações apenas declarou, em tom de constatação, que ela já não passava mais pela rua que nos encontrávamos.  Apesar desse primeiro contato não ter gerado nenhuma justificativa histórica para o deslocamento da estrada a outra rota,  o que passou também desapercebido por nós,  ficamos sabendo pelas conversas que Jamil Fahed Suleiman, sobrinho do tio Khaled,  participará daquela gloriosa luta de libertação local.  Jamil, nome que descobrimos ser bastante comum entre os palestinos e xará do meu pai, foi uma  pessoa que esteve presente durante toda a nossa viagem,  sempre muito querido, amistoso, com sorriso largo no rosto e interessado em nos ajudar (foi ele que nos levou até Khalil – Hebron), além de ser mestre no tradicionalíssimo costume da bela receptividade árabe-palestina ao nos acolher no noivado de seu filho e, dias depois, em sua casa com delicioso almoço riquíssimo de sabores da terra das oliveiras.  A comida feita em casa para recepcionar o convidado possui um significado simbólico de carinho, cuidado e respeito para com este, mais,  é uma das formas de apresentação do sagrado na cultura árabe-islâmica, na medida em que o alimento é uma dádiva divina.  Aos meus olhos,  Jamil  é um exemplo de “arquétipo dos árabes” que conheço desde criança,  cor da pele morena, cabelo preto, olhos atentos, magro, alto e completamente viciado em café e cigarros.  Se acrescentarmos que o preço do cigarro é sobretaxado por Israel, o que faz com que essa mercadoria seja extremamente cara, entendemos o quanto fumar  é mais um vício do que um hábito sem importância.  Jamil lembra muito o meu tio libanês Badri Taha,  tanto fisicamente como pela descrição dos hábitos e costumes, incluso os nada saudáveis,  o que me fez simpatizar com ele instantaneamente.  Esse ato voraz que revelava a incrível capacidade de fumar um cigarro atrás do outro como se fosse um só,  maços e maços,  somados a  goles e mais goles de café árabe forte, com gosto peculiar do cardomomo, é algo impressionante. A explicação brincalhona dele para tal atitude é que o café “pede” o cigarro e o cigarro, por sua vez, “pede” o café – “assim não dá para parar” – exclama. Se existe alguma verdade nessa brincadeira, nosso querido Jamil estará eternamente preso a esse ciclo, já que torra, mói, mistura especiarias, embala e vende café em suas lojas. Isso me fez lembrar de um comentário jocoso, o qual diz que não foi à toa que o benevolente Allah (Deus)  proibiu o álcool,  pois sabia que se os árabes pudessem beber como fumam, nenhum deles iria para o céu.

Jamil nos contou que durante a primeira Intifada, em 1987, no seu pequeno vilarejo Beit Ur al-Tahta, situado na Cisjordânia,  os jovens daquela época se reuniram para lutar contra a presença  das forças de ocupação sionistas.  Para tanto escolheram como alvo a comunicação rodoviária entre Tel Aviv e Al-Quds (Jerusalém), que na época cortava o vilarejo em questão.  A escolha dessa rodovia não foi por acaso, além de se tratar de uma clara afronta do exército invasor impor aos habitantes legítimos da terra a passagem diária de sionistas por dentro de seu milenar vilarejo, o lugar em questão durante anos produziu dezenas e dezenas de mortos e feridos,  seja pelos atos horrendos e covardes perpetrados pelos terroristas israelenses contra civis indefesos, através de rajadas de metralhadoras e bombas arremessadas em residência palestinas próximas à via e em pedestres que transitam nela. Seja pelos atropelamentos que se davam propositalmente, na grande maioria das vezes, por colonos sionistas ou membros do exército ocupante.  O evidente propósito de tais ações sionistas era o de tornar essa parte da cidade palestina desabitada, seu povo amedrontado e receoso de circular nas ruas outrora livres da presença doentia da ocupação e, por fim, obrigados a se deslocarem para sobreviverem, dada a inviabilidade econômica e social criada por esses ataques. Cansados de tal sórdida situação, os jovens da primeira revolta das pedras decidiram subir em uma pequena colina sobre a estrada e de lá arremessar pedras nos carros dos colonos, que transitavam por dentro da cidade palestina. Essa formatação de luta era algo simples, visto que identificar os carros foi e continua sendo possível, pois as placas de Israel são de uso exclusivo desses, indicam a possibilidade de livre circulação por todas as estradas. Já os carros com placas palestinas têm seu deslocamento bastante restrito à região em questão, sendo que somente algumas estradas são permitidas ao trânsito. Ao longo dos anos de colonização e ocupação, esses trajetos permitidos foram sendo reduzidos, paulatinamente, como forma de estrangular a vida cotidiana do povo palestino. O exército de ocupação israelense, diante da autodefesa da população originária, tratou de assassinar esses jovens, sempre quando possível, dispersá-los com bombas e desmantelar suas formas de organização espontâneas, com prisões e torturas.  Distintamente do efeito esperado pelos sionistas, tais atos não inibiram os valentes jovens, mas fizeram com que eles aprimorassem outras formas mais eficazes de combate com o precário material que possuíam em mãos.  Para fugir das incursões assassinas das tropas sionistas, os horários escolhidos para interceptar os carros não coincidiam com as rondas do exército de ocupação, assim como estabeleciam pontos de controle visual da aproximação destes, em uma espécie de olheiros responsáveis por alertarem o perigo iminente.  Aproveitando a geografia da região ao máximo, alguém, que infelizmente mão sabemos o nome, teve a genial ideia de melhorar a ação, propondo o deslocamento. Nesse local para uma região com uma curva muito acentuada no trajeto da rodovia, onde derramaram óleo diesel, por vezes, até o precioso azeite de oliva, que de um delicioso ingrediente da culinária árabe-palestina se transformara em arma da heroica resistência. Quando viam no horizonte um carro com placa árabe, tratavam logo de avisar do perigo da pista escorregadia, pedindo ao motorista que diminuísse a velocidade e tomasse os cuidados necessários.  Contudo quando viam se aproximar algum carro com placa de Israel, faziam questão de jogar pedras, a fim de que o motorista entrasse em pânico e assim acelerasse mais o automóvel em direção à perigosa curva sem saber da existência de óleo na pista e, consequentemente, da condição escorregadia da mesma.  Essa pequena engenharia de luta de libertação, que evoluiu na sua forma de combate durante a primeira Intifada, produziu mais de 30 acidentes com carros dos colonos sionistas naquele preciso local.  Fazendo por fim com que o ocupante militar abandonasse a antiga rota e traçasse uma nova linha para estrada, não mais passando por dentro do vilarejo, mantendo-se bastante distante do mesmo e com um traçado da nova estrada quase retilíneo por um notório medo adquirido desde então das curvas. 

Esse magnífico e belíssimo ato de legítima autodefesa contra o ocupante militar estrangeiro por parte desses jovens, cujos os nomes a história oficial não registra, libertou seu típico vilarejo palestino dessa forma de ocupação.  Uma pequena excepcional conquista que os grandes historiadores, analistas políticos, intelectuais…  não tratam em seus livros e conferências deve se constituir junto a centenas de outras histórias similares, em um rico manancial de estímulos à luta de libertação.  Tais histórias são nosso dever trazê-las à tona, torná-las conhecidas, contá-las e recontá-las em livros, palestras, artigos, filmes, nas igrejas, mesquitas, clubes, partidos, sindicatos, etc.  Temos que ir além da “mera” denúncia comum a nossa literatura sobre a Causa Palestina no Brasil que, positivamente, rompe com silêncio cúmplice da grande mídia e expõe a verdadeira vítima, mas que repete insistentemente a mesma tecla e que não diversifica sua abordagem para um público mais amplo, falando sempre para si mesmo. Pior, muito pior, termina sempre deixando um gosto amargo do derrotismo estéril, ao apenas e somente denunciar mortes, prisões, destruições de casa e todo o conjunto de desgraças imagináveis, ao invés de ressaltar o óbvio – com todo poderio colonial de Israel, do movimento sionista internacional e dos Impérios aliados, em especial os EUA – não conseguiram destruir o inextinguível povo palestino que permanece em luta há mais de 70 anos, em um feito que o coloca no seleto panteão como um povo colossal. 

Mesquita do túmulo do Profeta Abraão em Khalil (Hebron) da direita para esquerda:
Ahmad Jaradat, Khader Othman, Jamil Fahed Suleiman, Jamil Abdalla Fayad e Yasser Jamil Fayad.

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