A beleza do traço – Notas sobre a caligrafia árabe-islâmica

A beleza do traço – Notas sobre a caligrafia árabe-islâmica

Texto retirado do livro Amálgama de luta e beleza: somos todos palestinos

A caligrafia é a uma das mais importantes e prestigiadas artes islâmicas. Seu nascimento e desenvolvimento se deram tanto pela negativa religiosa do uso da imagem, em especial a humana, que inibiu o desenvolvimento da pintura e da escultura no Dar-al-Islam, quanto pela afirmação da importância da palavra como revelação divina (Al Corão), que mesmo sendo imutável em seu conteúdo e expressão linguística podia ser embelezada em sua forma. Disso deriva a íntima relação da caligrafia e do arabesco como formas de embelezamento e ornamento da palavra na cultura árabe- islâmica.

Segundo o estudioso da caligrafia árabe Yasin Hamid Safadi:

“A supremacia da palavra no Islã está refletida na aplicação universal da caligrafia. Escrever imprime as características de lugar a todas as espécies de objetos – objetos de uso cotidiano (tapetes, quadros, louças, etc.) assim como a superfície de paredes inteiras, mobiliário das mesquitas, o exterior e interior das mesquitas, dos túmulos e da Caaba, o mais famoso santuário islâmico.”

Na visão religiosa islâmica, Allah (Deus) não elegeu um povo (etnia) ou um grupo social em detrimento de todos os “outros”, mas escolheu o idioma árabe como forma de expressão de sua vontade. A própria língua árabe, que na sua origem pré-islâmica adorava a palavra, porém o fazia fundamentalmente pela poesia oral, se organiza linguisticamente com o advento do Islã: define um alfabeto com caracteres fixos, uma forma de escrever clássica (al corânica), uma sintaxe própria. Assim, para os muçulmanos, não existe uma missão mais importante que a de conservar e transmitir esse tesouro tão valioso (revelação divina) e, para fazê-lo, usam da perfeição e beleza da arte do traço. Não é por acaso que o calígrafo sempre teve um lugar de destaque nas profissões de arte do mundo árabe-islâmico, tendo por vezes status lendário, como Ibn Muqlah, que no século X redesenhou escrita Naskh e a popularizou, e mesmo de conteúdo religioso importante, alguns atribuem ao Imã Ali (que a paz e a bênção de Deus estejam sobre ele) primo e genro do profeta, fundador do Xiismo, ter sido o primeiro calígrafo do Islã do qual todos os demais calígrafos descendem pela arte – hoje, é uma respeitada profissão com curso superior universitário tendo centros de excelência, em todo mundo islâmico.

O alfabeto árabe com seus caracteres serve tanto ao ornamento dos arabescos como da fina arte da caligrafia. Essas representações gráficas são de uma maleabilidade incomparável, as letras dançam e se contorcem, podem ser talhadas de diferentes maneiras para tomar, finalmente, a forma de um monumento, uma flor, um vaso, um pássaro ou de qualquer animal. Isto lhe confere uma riqueza de detalhes e possibilidades artísticas ilimitadas.

A caligrafia árabe não é somente uma forma de arte, pois envolve representações do divino, de onde adquire sua notória posição religiosa. As letras do alfabeto árabe possuem conotações religiosas, como por exemplo, o altivo Alef ( أ), que é a letra inicial, tem essa primorosa posição, pois foi a primeira letra a se curvar perante Allah (Deus). Com o cálamo e a tinta, numa forma de oração, é possível criar o traço da caligrafia prodigiosa que nos liga a Deus e aos primeiros versículos revelados ao Profeta:

“Lê, que o teu Senhor é generosíssimo,
Que ensinou através do cálamo,
Ensinou ao homem o que este não sabia”
Surah Al-’Alaq 96, 3-5

A história da caligrafia árabe-islâmica significa a integração da arte com a erudição. Existem métricas definidas, incluso matematicamente, onde os espaços preenchidos pelo traço como, principalmente, os não preenchidos as definem. No desenvolvimento dessa arte, vários calígrafos renomados inovaram, redesenharam e criaram escolas de estilos e variações, que eram motivos de orgulho de sultanatos, califados e mesmo de dinastias inteiras. São seis estilos principais, dos quais derivam mais de 350 variações, todos com histórias próprias de surgimento, local no Dar-al-Islam, calígrafos importantes, mestres, escolas, califas mecenas, histórias reais e míticas… São esses os estilos:

• Thuluth: Primeira escrita surgida no século VII, durante o Califado Omíada, foi muito usada em inscrições de títulos e cabeçalhos, sendo a mais importante de todas as escritas ornamentais. Caracteriza-se pelas curvas com pequenos traços na parte de cima, podendo ligar ou entrecortá-las produzindo uma letra cursiva de grandes e complexas proporções.

• Riq’ai: Esse estilo evoluiu das letras Thuluth e Naskh, mas com uma direção mais simplificada, onde as formas geométricas são menores e mais curvas, tornando-a mais arredondada e densa, com pequenos traços horizontais. Era a escrita favorita dos otomanos, passou por várias modificações nas mãos do fabuloso calígrafo Sheik Hamdullah al-Amasi, sendo mais tarde revisada por outros, que a transformaram na escrita mais popular e usada em todo o mundo árabe.

• Taliq: Surgida no século IX e também conhecida como escrita farsi, foi bastante usada pelos persas que a criaram a partir da escrita árabe Firamuz. Modesta e cursiva, esta escrita é fartamente usada atualmente por árabes, hindus e turcos.

• Diwani: Muito usada pela Chancelaria Otomana, este estilo é cheio de bonitas curvas, que permitem muita liberdade de criação, podendo representar muitas imagens, objetos, animais, poemas e provérbios, simplesmente, através das letras árabes.

• Kufi: Surgida nas cidades de Kufa e Basra (Iraque) no século VIII, no início da era islâmica, foi a escrita sagrada dominante no mundo islâmico, com suas medidas específicas, linhas e ângulos retos e acentuados, além de linhas horizontais prolongadas, mais largas do que altas e sem regras, oferecendo assim uma gama de opões na criação de formas ornamentais.

• Naskh: Após ser redesenhada pelo extraordinário calígrafo Ibn Muqlah, ganhou popularidade em virtude de seu estilo característico, facilidade na leitura e escrita. É a escrita máxima para quase todos os islâmicos e árabes do mundo, devido à sua reformulação feita pelo fantástico Ibn al-Bawaab. Normalmente, é feita com traços pequenos horizontais e suas curvas cheias e profundas, com espaçamentos nos traços retos, verticais e nas palavras.

Na abertura de cada seção deste livro, utilizamos exemplos dessa arte islâmica presentes fortemente em toda a Palestina: nas mesquitas, nos santuários como Al-Haram al-Sharif, nos túmulos dos combatentes, nos muros, nos corações e almas de todos os palestinos, islâmicos ou não, pois a beleza – assim como a justa luta – não conhece limites no melhor do humano.

“Bilhetes de viagem”
Poema de Samih Al-Qasim em
forma de Oliveira – árvore símbolo da Palestina

Tradução do poema:


O dia em que eu morrer,
meu assassino, procurando em meus bolsos,
Encontrará bilhetes de viagem:
Um para a paz,
um para os campos e a chuva,
e um
para a consciência da humanidade.

Caro assassino meu, imploro-lhe:
Não fique e desperdice-os.
Pegue-os, use-os.
Imploro-lhe que viaje.

Share