CONTOS DA LUTA PALESTINA
Ghassan Kanafani (Akka, 9 de Abril de 1936, Palestina – Beirute, Líbano, 8 de Julho de 1972) foi um importante escritor e militante político palestino de esquerda. Desde a adolescência lutou contra a colonização da Palestina e pela preservação da identidade cultural de seu povo como militante da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) – organização secular da esquerda palestina. Seus contos e romances traduzem a luta dos trabalhadores contra colonização.
Muros de ferro
Todo mundo já sabia que dentro do pacote retangular que o pequeno Hassan acabara de receber, na manhã de seu aniversário, havia uma pequena gaiola com um passarinho. Amontoados ao redor do menino, ouvimos antes que ele arrancasse o papel cheio de furos, o bater hesitante das asas e um gorjeio abafado. Apesar disso, ninguém acreditava que o pássaro pudesse ter chegado vivo. E o que poderia fazer uma criança como aquela com um pássaro de verdade?
Momentos depois, o pacote estava aberto. Hassan se atira sobre a gaiola, agarrando-a e apertando-a com força. Grita excitado:
-É um pardal!
Mal tivemos tempo de colocar os olhos, de passagem, na gaiola e no pardal. Hassan estava emocionado, com as maçãs do rosto vermelhas e os olhos brilhando enquanto girava pelo quarto, sem saber o que fazer. Depois de alguns minutos, deixou-nos ver mais de perto o pássaro preso, mas não tirava a mão da gaiola. Agarrava a argola que havia no alto dela com força.
A gaiola não estava pintada e tinha a madeira coberta por uma camada de verniz polido. No centro dela, estava incrustado um poleirinho. Havia um pires destinado a conter água, fixado num canto, e um recipiente para grãos, no outro. No teto da gaiola, que tinha forma de uma pirâmide, pequenas barras de ferro haviam sido cuidadosamente encaixadas. O pássaro se agarrava no alto com todas as forças de suas frágeis patas. Tremia ao sacudir desesperadamente a cabeça, mas colocava sobre nós aqueles pequenos olhos brilhantes, como dois aros negros. O alto da gaiola era de um vermelho metálico, o que parecia dar aos seus movimentos uma violência impotente e triste. Tinha, no olhar sem esperança, uma espécie de heroísmo. Por uns momentos, deixava de pular por entre as barras da jaula e do teto. A cada vez aterrorizava pesadamente, pondo o bico entre as barras, procurando freneticamente uma saída. Os pontos negros e vermelhos que tinha na cabeça davam-lhe um certo ar de fúria e tristeza simultâneas, uma tristeza pungente. Seu pequeno corpo deitado, as garras crispadas e os olhos febris davam a impressão de que meditava, pronto a tomar uma importante decisão.
-Por que não fica quieto um pouco?
-Está com medo…
-De quem?
-De você…
Hassan observa a ave com um olhar de decepção. Perguntava-se se alguma coisa nele poderia assustá-lo. Seu rosto revelava a confusão interior da criança que não sabe como conduzir as coisas para que tudo caminhe conforme sua própria vontade. Foi então que meu irmão mais velho, que estava bem atrás de mim, disse:
-Não, ele não tem medo de você. Um pardal não sente medo.
-Então por que ele não para de se agitar?
-Está acabando de tomar posse da nova casa… Não está vendo? Olhe bem… Está observando pedaço por pedaço, parte por parte, aprendendo a se mexer, conhecendo a gaiola…
Todos, juntos, olhavam para o pássaro que volteava sem descanso por entre as barras. Realmente, era bem possível que estivesse fazendo o reconhecimento do novo lar… Hassan, no entanto, precisava de respostas mais exatas:
-Mas ele já estava nessa gaiola antes de chegar aqui. Já teve tempo pra descobrir a casa nova antes…
-Seu tio a comprou, ou talvez capturou o passarinho, há pouco tempo. Em todo caso, a gaiola é uma coisa nova para ele. Por isso se mexe tanto assim.
Nossos olhares se voltaram outra vez para o pássaro. Ele continuava, balançando dentro da malha de ferro que o prendia. Meu irmão voltou a falar, com a mesma voz calma:
-Um pardal precisa de dois a três meses para se acostumar com sua casa nova. Durante esse período, ele observa tudo com a maior atenção. Ao mesmo tempo, não deixa de procurar uma saída para dar o fora.
Hassan aperta suas pequenas mãos às costas e, sem tirar os olhos do pássaro cinza salpicado de um vermelho sangue, diz:
-Vai ficar assim três meses?
-Vai.
-E não vai cantar durante três meses?
-Não. Vai gorjear um pouquinho, mas não vai cantar.
-E depois?
-Depois ele talvez cante…
-E de noite, ele vai dormir como a gente dorme?
-Não. Ele fica de pé, sem deitar. E deixa os olhos bem abertos para ver tudo ao seu redor.
Meu irmão, que sabia que as perguntas de Hassan não iriam acabar nunca, saiu logo do quarto. Eu sabia, de minha parte, que Hassan não me deixaria dormir a noite, que iria se ocupar o tempo todo do pássaro, olhando para ele a qualquer movimento. Durante cinco dias inteiros, o pássaro preencheu todos os espaços da vida de Hassan. Ele convidava seus amigos para contemplar o bicho, que agora dera para chupar as barras da gaiola. Parecia estar descobrindo cada canto, cada fresta, cada cheiro. O menino repetia a seus amigos o que meu irmão havia dito, e acrescentava, como fazem as crianças, a cada uma das explicações, uma nova imagem ou um novo traço.
Porém, Hassan não me parecia inteiramente convencido de que o pássaro assustado acabaria por se acostumar ao novo lar. Falou de suas dúvidas comigo em muitas oportunidades, pois não tinha coragem de falar com meu irmão mais velho. Um dia, ele me perguntou:
-Se depois de três meses eu resolvo abrir a gaiola e deixo que ele fuja, será que volta?
Eu não podia responder. Não conhecia nada sobre a vida e os hábitos dos pássaros. Prometi que me informaria com meu irmão e lhe levaria a reposta. Quando falei com meu irmão, ele resmungou:
-Não seja idiota. Ele se acostuma à gaiola, se conforma em viver ali. Mas se for colocado fora dela não volta nunca mais.
Não contei isso a Hassan. Não era o caso de complicar a história, que já era demais para sua pequena cabeça. Era melhor que ele encarasse as coisas à sua maneira. Era mais cômodo para Hassan e para nós também. Meu irmão achava a mesma coisa. Ele achava ainda que a ideia de dar um pássaro vivo a uma criança era absurda. Isso podia fazer com que outros aspectos de sua vida ficassem mais tristes:
-Olhe aqui. Ele abandonou todos seus brinquedos, os bichinhos de plástico, de pano ou de pelúcia. Um milhão de pássaros de plástico ou de pano não vão tomar o lugar desse maldito pardal… Qual foi o nome que ele lhe deu?
-Hassoun*. (*Hassoun têm dois significados no texto. É ao mesmo tempo diminuitivo de Hassan, nome do garoto, e o nome de um pássaro raro do Oriente Médio)
-O quê?
-Hassoun. Ele não entende por que querem dar-lhe outro nome.
Logo depois, Hassan me pediu dinheiro para comprar uma gaiola um pouco maior. Eu já havia notado que a outra gaiola era muito pequena para abrigar o voo desvairado e incansável da ave. Mas a nova gaiola não mudou nada. Ela somente lhe permitiu ir mais longe a cada bater de asas. Enquanto isso, Hassan se encantava, sobretudo quando lhe anunciei que a mudança ficaria por sua conta.
Expliquei que devia segurar o pássaro com as duas mãos, sem apertar muito para não matá-lo, mas também sem deixar folga suficiente para que fugisse.
-E se ele me bicar?
-Só se você estiver apertando muito. Nesse caso afrouxe um pouco.
-E se ele fugir?
-É só não soltar demais.
Ele olha pra mim sem compreender muito bem. Mas, de um jeito ou de outro, devia ser ele mesmo o responsável pela mudança. E fez tudo melhor do que eu podia imaginar. Nem se queixou quando o pássaro meteu o bico em sua mão. Nos dias seguintes, falou muito e acreditou mesmo que o pardal estava mais feliz com sua nova gaiola. Meu irmão mais velho, escutando pacientemente durante o almoço, não concordava. Disse a Hassan, sem levantar os olhos do prato:
-Não foi bom você comprar uma jaula nova…
-Por quê?
-Você perdeu um mês. O pássaro precisa recomeçar a se acostumar agora com a nova casa. Isso vai levar mais tempo, porque essa gaiola é maior.
Observei com o canto dos olhos o menino, que olhava tristemente ao redor, fazendo força para continuar a comer. Logo ele desiste, põe a colher ao lado do prato e me encara. Vendo a reação dele, meu irmão tenta consertar:
Mas quem pode saber? O pássaro pode até gostar de sua nova casa e se acostumar depressa. Ele tem o jeito de quem entende dessas coisas…
Antes que meu irmão acabasse de dizer o que queria, nossos olhares se encontraram. Hassan continuava a me observar fixamente, esperando algum gesto que o tranquilizasse. Mas meu irmão, acabando de engolir às pressas um enorme bocado, continuou:
-Pois é… Seu pássaro deve ser especialista. Ele deve ter morado uns dois meses numa gaiola de vime na casa do tio. Depois, ele o colocou numa gaiola de madeira que comprou especialmente para mandar a você. Então,
aqui, depois de um mês, você lhe comprou essa gaiola novinha…
Sem esperar o fim da frase, Hassan empurrou a cadeira, se levantou e foi em silêncio para seu quarto. Tentei evitar segurando-o pelo braço. Com a cabeça baixa, o queixo tocando o peito, ele tinha os olhos cheios de lágrimas
que estava tentando conter, à mesa. Antes que começasse a chacoalhar de soluços, eu lhe sussurrei ao ouvido.
-O que você tem?
Ele não chegou a responder. Soltei seu braço e ele correu para o quarto. Alguns minutos depois fui até lá. Ele estava ajoelhado perto da gaiola onde o pássaro saltava de um lado para o outro. Quando se virou para mim, parecia ter preparado o que me foi dizendo:
-Há três meses ele não para de se agitar. E tem ainda outros três meses pela frente…
Pensei de repente que as pequenas asas não iriam aguentar três meses. Eu ia propor a Hassan que abrisse a porta da gaiola e o soltasse. Controlei-me, para deixá-lo chegar por si mesmo a essa decisão. No instante seguinte, uma coisa estranha aconteceu: o pássaro parou de uma vez. Segurando uma barra com suas garras, e pescoço esticado – um pescoço branco feito espuma do mar. Olhava para nós sem qualquer movimento. Eu logo percebi o que ocorria. Mas Hassan ficou feliz. Pondo sobre mim seus grandes olhos, sorriu. Um sorriso que já estava ficando raro depois daquilo tudo. Eu repeti seu sorriso.
Correu feito uma flecha rumo à sala de jantar. Ouvi os gritos de alegria que ele dava, misturados ao som de seus passos pelo corredor:
-Ele parou! Hassoun parou!
Depois ouvi quando voltava. Abraçou a gaiola e se ajoelhou outra vez. Tamborilava como os dedos sobre as pernas, tremendo de alegria. Meu irmão chega perto e fica parado por um momento atrás dele, sem muita atenção ao pássaro. De repente, se inclina para frente com as mãos apoiadas nos joelhos, observa o pássaro sempre imóvel, enquanto Hassan repete sem parar:
-Está vendo? Ele parou…
Com os olhos sempre fixos no pardal, meu irmão balança lentamente a
cabeça, franze as sobrancelhas e diz simplesmente:
-Ele acaba de morrer.

Imagem de Ghassan Kanafani